Por Renato Villela em 09/01/2018 no site Portal DBO
Um novo modelo de Integração Lavoura-Pecuária (ILP) começa a despontar no campo. É o Sistema São Francisco, adotado por produtores de Quirinópolis, município 270 km ao sul da capital Goiânia, GO. Seu nome é uma alusão ao rio que corta a propriedade Fazendinha, do produtor Heinz Guderian Jacintho da Silva, onde foram feitos os primeiros plantios. O sistema consiste na sobressemeadura de capim sobre soja ou milho, mas com um diferencial: ao invés de braquiária ruziziensis, “gramínea-rainha” da integração, usa-se mombaça, capim do gênero Panicum até pouco tempo considerado inadequado para ILP. Experiências isoladas de sobressemeadura com essa cultivar já haviam sido feitas no país, mas em Quirinópolis a técnica se consolidou dentro de um sistema referendado pela Embrapa, que foi lançado oficialmente em abril. O grande trunfo do São Francisco está na maior oferta de forragem para produção de palha visando ao cultivo agrícola e para consumo do gado na seca, o que possibilita obter mais arrobas/ha, justamente quando os animais costumam perder peso.
A ruziziensis é considerada a “gramínea-rainha” da ILP por apresentar melhor “plantabilidade”, neologismo criado pelos produtores para indicar facilidade de semeadura na palha. “Com hábito de crescimento decumbente (prostrado), essa braquiária não forma touceiras como os capins do gênero Panicum, facilitando a passagem das máquinas”, explica Manuel Claudio Motta Macedo, pesquisador da Embrapa Gado de Corte. Além disso, sua alta relação folha/caule propicia uma superfície de contato maior para aplicação do herbicida dessecante. Gastam-se em torno de 2 litros do produto para tratar um hectare de ruziziensis, em contraste com 3 a 3,5 litros exigidos pelo mombaça. Entretanto, esse custo maior é compensado pela farta produção de massa forrageira (30-50% superior à da concorrente) e pela qualidade nutricional do capim, que tem maior digestibilidade e teor de proteína bruta do que o ruziziensis (10%-12%), o que possibilita produzir mais carne por hectare. E o problema das touceiras está sendo resolvido com manejo adequado.
Até 2016, 26 produtores da região já haviam experimentado o Sistema São Francisco, fazendo sobressemeadura de avião ou com plantadeira específica. Os resultados têm sido monitorados por pesquisadores do Instituto Federal Goiano (IFGoiano) e difundidos entre os produtores pela Emater, com apoio da prefeitura do município. “A integração soja/gado é uma alternativa à cana-de-açúcar, cujos contratos são longos e deixam o produtor amarrado”, justifica o prefeito de Quirinópolis, Gilmar Alves. Outro entusiasta do sistema é o empresário David Campos Alves, da empresa goiana Sementes Moeda, que deu o pontapé inicial para o São Francisco ganhar corpo. Há dois anos, ele convidou o pesquisador Lourival Vilela, da Embrapa Cerrados, e mais nove produtores, para conhecer a iniciativa, durante um dia de campo. Desde então, Vilela acompanha o desenvolvimento do sistema. Em 2016, o pesquisador fez uma palestra apresentando os fundamentos da técnica para uma plateia de 200 pessoas, em Quirinópolis.
Por que o mombaça? - A sobressemeadura de soja com mombaça no município está associada ao histórico agropecuário da região, que no passado teve suas pastagens formadas com colonião (primeiro Panicum introduzido no Brasil) e hoje é um dos maiores polos de produção de sementes forrageiras do país, com destaque para o mombaça. Devido à maior disponibilidade no mercado local, é compreensível que essa cultivar tenha sido usada pelos produtores na ILP, porém não há restrições a variedades do gênero Panicum. “Vamos testar também o tamani e o massai”, adianta Vilela. A escolha da soja como principal componente agrícola do São Francisco foi também uma questão de oportunidade. “Muitos pecuaristas da região já recuperavam pastagens com soja, por isso usamos essa cultura para difundir o sistema”, diz o pesquisador, ressaltando que a técnica também pode ser adotada em lavouras de milho.
A sobressemeadura de capim sobre culturas graníferas é uma estratégia antiga. Tem sido adotada por integradores há mais de 20 anos, visando à formação de pastagens de aveia/azevém (no Sul), milheto e ruziziensis (no Centro-Oeste). O mombaça ficou de fora desse consórcio não somente porque forma touceiras. As cultivares convencionais de soja
têm ciclo longo (média de 140 dias), sendo plantadas de meados de outubro (quando São Pedro ajuda) a início de novembro. Sua colheita prossegue até março/abril, quando as chuvas no Brasil Central já estão escasseando. Se a sobressemeadura de braquiária, sabidamente mais rústica, é temerária nessas condições, muito mais arriscado é lançar sobre a lavoura sementes de Panicum com pouco volume de chuvas pela frente. “Por isso, nunca recomendávamos o consórcio soja/mombaça”, diz Vilela.
Isso começou a mudar apenas após a chegada ao mercado de variedades precoces (ciclo de 100 a 105 dias), desenvolvidas para atender agricultores que fazem safrinha. A soja de ciclo curto foi o “pulo do gato” do Sistema São Francisco, pois permitiu antecipar a sobressemeadura do capim em 30-40 dias. Com a possibilidade de formar pasto em janeiro, dependendo da época de plantio da soja, o produtor fica mais seguro para arriscar. “Essa janela que se abre no meio do período chuvoso faz toda a diferença, não apenas para a germinação das sementes, mas também para garantir o bom desenvolvimento inicial do mombaça”, afirma Vilela. O custo da sobressemeadura do capim não é tão alto. Neste ano, ficou em R$ 200/ha, devido ao aumento no preço da semente de mombaça, que passou de R$10 para R$ 18/kg, mas, em 2016, exigiu desembolso de R$ 100/ha. Em contrapartida, o produtor pode obter no mínimo 5-8@/ha em 80-150 dias.
Cuidados na sobressemeadura - Para formar um pasto de qualidade usando o Sistema São Francisco, é preciso fazer a sobressemeadura no momento certo: quando a soja entra na fase reprodutiva, estágio em que os grãos estão plenamente desenvolvidos e tem início a formação das vagens. Na terminologia dos agricultores, é quando a soja começa a “lourar”, ou seja, suas primeiras folhas amarelam (senescem) e caem, o que acontece entre 30 e 35 dias antes da colheita, dependendo da variedade. É fundamental distribuir as sementes de capim nesse estágio da cultura, para que a maior parte das folhas se deposite sobre a semente, lhe conferindo proteção contra predadores (grilos, formigas, pássaros) e lhe garantindo a umidade necessária para germinar.
O pesquisador João Kluthcouski (João K), da Embrapa Arroz e Feijão, com sede Goiânia, GO, um dos principais especialistas em integração do país, chama a atenção para um erro frequente no campo. Muitos produtores estão fazendo a sobressemeadura tardiamente, depois que metade das folhas da soja já se desprendeu da planta. O que garantia proteção se transforma em obstáculo. “As folhas formam um tapete, a semente cai sobre essa cobertura e não entra em contato com a umidade do solo. Daí não germina e o pasto fica cheio de falhas”, explica. Adiantar o processo também não é recomendável, pois traz riscos para a cultura agrícola. “O capim cresce e sombreia a soja, além de atrapalhar a operação de colheita”, diz Vilela.
Também é fundamental consultar as previsões de tempo, porque, se não chover com regularidade nos 20 dias após o plantio, perde-se o sistema. Segundo João K, o mombaça exige entre 50 e 200 mm de chuva para se estabelecer adequadamente. O sucesso na formação da pastagem também depende dos cuidados com a lavoura. “Se a soja estiver infestada por invasoras no momento da sobressemeadura, o capim será prejudicado”, alerta Vilela. Os dois pesquisadores, que acompanharam a reportagem de DBO, usam uma expressão curiosa para definir esses detalhes nos tratos culturais: a “tecnologia capricho”. Significa fazer bem feito, no momento adequado. “Do contrário, será preciso remendar lá na frente. Fica mais difícil e mais caro”, explica Vilela.
A taxa de semeadura recomendada é de 3 kg de sementes puras viáveis de mombaça por hectare. Os produtores que recorrem ao avião têm preferido trabalhar com sementes revestidas (incrustadas), pelo fato de serem mais pesadas, o que lhes confere melhor “efeito balístico”, minimizando o risco de deriva. Mas um erro grave tem sido cometido. “Na hora de fazer os cálculos da quantidade de sementes, o produtor se esquece de levar em conta o peso do revestimento, que é três/quatro vezes maior do que o das sementes. Quando isso acontece e se joga semente a menos, o resultado é uma pastagem mal formada” alerta o pesquisador. Apesar da grande oferta de aviões agrícolas na região durante o período de entressafra, o que popularizou seu uso, muitos produtores estão deixando de lado as aeronaves e optando por lançar as sementes “em terra”, por meio de uma caixa de plantio adaptada a pulverizadores (veja quadro ao lado).
Produção de massa forrageira - Formada a pastagem, é preciso avaliar sua produção forrageira para calcular adequadamente a lotação. Como faltam informações nessa área, a pesquisadora e professora Patrícia Soares Epifanio, do IFGoiano, unidade de Quirinópolis, e sua colega, Kátia Aparecida de Pinho Costa, da unidade de Rio Verde, decidiram realizar um estudo para avaliar o comportamento do mombaça em ILP. Patrícia acompanha de perto cinco fazendas que adotaram o Sistema São Francisco e, com auxílio dos alunos, coleta amostras para avaliação de produtividade forrageira e qualidade nutricional do capim. “Nosso trabalho começa antes mesmo de os produtores colocarem os animais no pasto. Medimos a altura da gramínea, avaliamos a relação folha/colmo e o número de perfilhos. Depois coletamos as amostras, pesamos e enviamos para nosso Laboratório de Forragicultura e Pastagens”, diz ela. A maioria das fazendas acompanhadas tem registrado produção de 3 a 5 t/ha.
As análises bromatológicas para verificação do teor de proteína e digestibilidade são feitas por Kátia e têm confirmado a qualidade desse capim. Nas amostras coletadas em sete fazendas, em 2015/2016, constatou-se, em média, 10% de proteína bruta e 50% de digestibilidade na matéria seca. A pesquisadora também está realizando avaliações a nível experimental, em uma área de 6 ha, com outros capins, além do mombaça: o tamani, a ruziziensis e o xaraés, todos introduzidos em sobressemeadura sobre lavouras de soja. O experimento possibilitará maior rigor nas coletas, o que nem sempre é possível nas propriedades, fator crucial para se conseguir dados fidedignos. Com o experimento, a pesquisadora pretende não apenas expandir o São Francisco para além da região de Quirinópolis, mas mostrar que é possível utilizar outros capins nesse sistema de integração. Segundo ela, criou-se um mito de que somente a ruziziensis é boa para ILP, devido a sua facilidade de dessecação, mas outras braquiárias, como a paiaguás e a piatã, dão resultados melhores em termos de produção e valor nutricional, e também são fáceis de dessecar.
Para Vilela, é preciso compreender que as duas atividades – pecuária e agricultura – devem ser contempladas para que a integração funcione de modo harmônico. Nem sempre isso acontece no campo. “A pastagem formada nas áreas de integração muitas vezes é a única que o produtor tem para alimentação do gado na seca; então, ele exagera na lotação e o pasto fica rapado”, afirma. A consequência vem logo adiante, com a falta de palhada para o plantio direto da cultura subsequente. Para evitar problemas, o gado deve ser colocado no pasto cerca de 40 dias após a colheita da soja, quando o mombaça está com 70-80 cm de altura, e pastejar metade da massa forrageira disponível na área. “É o que temos feito com a braquiária em outros sistemas”, diz Vilela. Atenção: a retirada dos animais deve ser feita pelo menos 30 dias antes do plantio da lavoura, no início das chuvas. “É o tempo necessário para que o capim rebrote e acumule área foliar, do contrário o herbicida não age sobre as plantas e a dessecação é prejudicada”, complementa Patrícia. Vale lembrar que as pastagens formadas pelo Sistema São Francisco não precisam ser adubadas, pois aproveitam o fertilizante residual da soja.
*Matéria originalmente publicada na edição 438 da Revista DBO.
Fonte: Portal DBO
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